Alimentos Irradiados

Lembranças trágicas
Infelizmente guardamos péssimas lembranças sobre os efeitos da radioatividade. A bomba atômica sobre Iroshima e Nagasaki na segunda Guerra Mundial, o acidente nuclear de Chernobyl na ex-URSS e o desastre com o Césio 137 em Goiânia, marcaram profundamente o imaginário coletivo, associando radioatividade a malefícios à saúde e à morte. Sem dúvida, conhecer o passado nos deixa mais atentos e mais críticos em relação ao presente e ao futuro, mas é preciso ser prudente e não deixar que as trágicas lembranças provoquem cegueira e intransigência. A informação, nesse caso, pode ser um excelente colírio.

O interesse dos pesquisadores em saúde pública pela irradiação dos alimentos existe há pelo menos 100 anos. Nos Estados Unidos, o Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT) vem realizando pesquisas nessa área desde 1899 e na Europa, cientistas alemães e franceses mostravam interesse pelo assunto a partir de 1914. Entretanto, os resultados dessas pesquisas não foram os mais animadores porque o processo de irradiação provocava alterações que comprometiam a aceitação do produto pelos consumidores. Mas as pesquisas não pararam por aí. A partir de 1950, novos estudos começavam a revelar benefícios trazidos pela irradiação dos alimentos. Além do potencial de diminuir a incidência de intoxicações alimentares, a irradiação inibe o brotamento de raízes e tubérculos, desinfesta frutos, vegetais e grãos, atrasa a decomposição, elimina organismos patogênicos e aumenta o tempo de prateleira de carnes, frutos do mar, frutas, sucos de frutas que podem ser conservados durante muito tempo (anos) sem refrigeração.

Mas a tragédia provocada pela bomba atômica durante a segunda guerra mundial repercutiu de maneira negativa sobre os avanços que vinham sendo alcançados até então. A opinião pública se tornou mais crítica e passou a exigir uma série de explicações, tais como:

  • Os alimentos irradiados são radioativos ?
  • A irradiação produz toxinas nos alimentos ?
  • A irradiação acarreta a perda de nutrientes ?
  • Quais as doses de radiação que podem ser seguras para a saúde ?
  • Quais os efeitos da radiação sobre o sabor, cor e textura do alimento ?
  • O processo de irradiação é seguro para o meio ambiente ?
Essas respostas foram obtidas através de inúmera pesquisas, grande parte delas realizadas nos EUA. Durante muito tempo, os alimentos irradiados foram servidos a vonluntários, astronautas, pacientes imunodeprimidos e militares de várias partes do mundo. O objetivo deste artigo é responder a essas perguntas para informar os leitores da Nutriweb.

Entre 1964 e 1997, a Organização Mundial de Saúde acompanhou o resultados desse estudos, em conjunto com Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA),através de uma série de reuniões com especialistas de diversos países do mundo. Na última reunião em setembro de 1997, a conclusão final foi divulgada: a OMS aprova e recomenda a irradiação de alimentos, em doses que não comprometam suas características organolépticas, sem a necessidade de testes toxicológicos. De lá para cá, a irradiação de alimentos foi aprovada pelas autoridades de saúde de 40 países.

 

O que faz a irradiação no alimento?

As formas de radiação utilizadas no processo de irradiação do alimento provocam ionização, ou seja, criam cargas positivas ou negativas; a formação dessas cargas resulta em efeitos químicos e biológicos que impedem a divisão celular em bactérias pela ruptura de sua estrutura molecular. Os níveis de energia utilizados para se conseguir esse efeito não são suficientes para induzir radioatividade nos alimentos. O alimento, em hipótese alguma, entra em contato com a fonte de radiação.
 

Efeitos sobre a constituição dos alimentos

A irradiação pode induzir a formação de algumas substâncias, chamadas de produtos radiolíticos, na constituição dos alimentos. Estas substâncias não são radioativas e não são exclusivas dos alimentos irradiados. Muitas delas são substâncias encontradas naturalmente nos alimentos ou produzidas  durante o processo de aquecimento (glicose, ácido fórmico, dióxido de carbono). Pesquisas sobre essas substâncias não encontraram associação entre a sua presença e efeitos nocivos aos seres humanos.
Em relação aos nutrientes, a irradiação promove poucas mudanças. Outros processos de conservação, como o aquecimento, podem causar reduções muito maiores dos nutrientes. As vitaminas por exemplo, são muito sensíveis a qualquer tipo de processamento, no caso da irradiação, sabe-se que a vitamina B1 (tiamina) é das mais sensíveis, mas mesmo assim as perdas são mínimas. A vitamina C (ácido ascórbico), sob efeito da irradiação, é convertido em ácido dehidroascórbico, que é outra forma ativa da vitamina C.
 

Porque tantos países têm utilizado a irradiação dos alimentos?

Principalmente por uma questão econômica.  Segundo a (FAO), cerca de 25% de toda produção mundial de alimentos se perde pela ação de microorganismos, insetos e roedores. A germinação prematura de raízes e tubérculos condena à lata de lixo toneladas desses produtos e é um fenômeno mais intenso nos países de clima quente, como o Brasil. A irradiação ajuda a reduzir essas perdas e também reduz a dependência de pesticidas químicos, alguns deles extremamente nocivos para o meio ambiente (ex. metilbrometo).

Entre os alimentos submetidos a esse processo estão as frutas, vegetais, temperos, grãos, frutos do mar, carne e aves. Mais de 1,5 toneladas de alimentos é irradiada no mundo a cada ano, segundo a Fundação para Educação em Alimentos Irradiados (entidade norte-americana). Embora essa quantidade represente apenas uma pequena fração do que é consumido no mundo todo, a tendência é crescer.
 

Quais são as doses seguras para a saúde?

De acordo com a OMS, alimentos irradiados com doses de até 10KGy não necessitam de avaliação toxicológica ou nutricional. Os alimentos irradiados consumidos no mundo não recebe mais do que essa dosagem.

A dose de radiação é medida em Grays (G) ou quilograys (kGy), onde 1 Gray=0,001 kGy= 1 Joule de energia absorvida por quilograma de alimento irradiado. Para retardar o amadurecimento de frutas, por exemplo, não é necessário mais do que 1 kGy. Para inibir o brotamento de raízes e tubérculos (batata, cebola, alho, etc.) a dose necessária varia de 0,05 a 0,15 kGy. Para prevenir que os grãos sejam infestados por insetos, 0,1 a 2kGy são suficientes.

 

Efeitos sobre o sabor, cor e textura

Nem todos os alimentos podem ser irradiados, um exemplo é o leite, que adquire uma sabor impalatável. Para se adotar a irradiação como um processo de conservação do alimento, é preciso que se realize um estudo das suas características organolépticas pós-tratamento. Na maioria dos alimentos, entretanto, essas alterações são mínimas ou simplesmente inexistem.

O processo de irradiação é seguro para o meio ambiente?
Sim, é um processo bastante seguro, que não produz nenhum tipo de resíduo.

Na irradiação de alimentos utiliza-se como fontes de radiação os isótopos radioativos, mais frequentemente o Cobalto 60, obtido pelo bombardeamento com nêutrons do metal Cobalto 59 em um reator nuclear. Depois que o Cobalto 60 é produzido,  ele é duplamente encapsulado em tubos de aço inoxidável, o que impede qualquer vazamento de radiação. A meia-vida desse elemento é de 5,3 anos.

Os produtos a serem irradiados, embalados ou a granel, passam pela câmara de irradiação através de um sistema transportador composto por esteiras, onde são submetidos a um campo de irradiação num ritmo controlado  preciso, de forma a receber a quantidade exata de energia para o tratamento. Os níveis de energia são baixos e os produtos irradiados não se tornam radioativos. O processo é monitorado eletronicamente por operadores qualificados. Quando a fonte de radiação não se encontra em uso, ela é mantida dentro de uma piscina profunda. A câmara de irradiação é composta de paredes de concreto e portas de chumbro, o que impede o vazamento da radiação. Há ainda dispositivos de travamento e alarme que impede que a fonte de radiação se eleve da piscina caso as portas da câmara não estejam lacradas.
 

Alimentos Irradiados no Brasil

No Brasil, a legislação sobre irradiação de alimentos existe desde 1985 (Portaria DINAL no. 9 do Ministério da Saúde, 08/03/1985). Apenas uma empresa realiza esse serviço e está localizada em São Paulo. Em Piraciba, o Centro de Energia Nuclear para Agricultura (CENA), da Universidade de São Paulo, vem realizando pesquisas na área e presta serviço para as indústrias. O Instituto de Pesquisas Nucleares, também da USP, além de realizar pesquisas na área, realiza um trabalho junto  aos produtores, mostrando os benefícios e vantagens da irradiação de alimentos.
 

Campanhas educativas

A experiência mostra que os consumidores, quando devidamente informados, reagem positivamente à oferta de alimentos irradiados. Um estudo realizado na Alemanha revelou que os consumidores se preocupam com o processamento dos alimentos que consomem, no entanto essa preocupação foi maior no caso dos pesticidas (55%) e conservantes (43%) do que da irradiação (38%) e embora uma parcela dos consumidores seja extremamente contrária à irradiação dos alimentos, a maioria muda de opinião após serem expostos a campanhas educativas. Na Argentina, uma campanha de esclarecimento  aumentou muito a aceitabilidade das cebolas irradiadas. Na França aconteceu o mesmo depois que uma rede de supermercados colocou à venda morangos irradiados. Após o esclarecimento da população, os consumidores passaram a preferir os produtos irradiados devido a sua melhor qualidade. De fato, isso mostra que, quando bem esclarecidos, os consumidores dão a devida importância à segurança e à qualidade dos produtos que consomem.

 

Luciana Christante de Mello
Farmacêutica modalidade Alimentos
Mestre em neurociência e comportamento pela USP
Jornalista Científica
Pesquisadora Associada do NIB/UNICAMP